A criminalização da política, recorrente na história da Humanidade, desemboca inevitavelmente em ditadura. Nesse processo, o alvo primordial é sempre o Poder Legislativo, pulmão da democracia. Hitler, por exemplo, mandou queimá-lo. Providenciou um incêndio no prédio do Parlamento alemão e acusou os comunistas pelo delito. Na sequência, assumiu plenos poderes, que o fizeram um dos mais bárbaros tiranos de todos os tempos. O que o levou àquele gesto foi a rejeição ao diálogo, ao convívio com o contraditório, a submissão à vontade da maioria. Como não a tinha — e achava desnecessário tê-la —, optou pelo que, na sua visão autoritária, lhe pareceu mais prático: fechar o Parlamento. Simples assim. Desprezava o ganho civilizatório que a política expressa; achava-a apenas uma perda de tempo. Em graus variados, tem sido esse o denominador comum aos governantes que enjeitam a política, instância de convívio entre diferentes, em que são inevitáveis os conflitos de interesses. Aristóteles a via como a mais nobre das atividades humanas. De fato, quando exercida dentro do objetivo em que foi originalmente concebida — a de proporcionar solução pacífica às crises —, tornou-se um antídoto às guerras. Se não as evitou por completo, ao menos reduziu (e continua reduzindo) sua incidência.
Mas voltemos ao Brasil. Desde a campanha de 2018, o presidente Bolsonaro insiste em associar política a corrupção, como se uma decorresse da outra, inseparáveis como irmãs siamesas; para deter uma, seria preciso acabar com a outra, é o teor de tal mensagem, confirmada ao longo de seu governo. Vangloria-se, por exemplo, de ter formado um ministério sem políticos — um ministério de técnicos e especialistas. Uma ideia antiga, que, embora sem jamais produzir bons resultados, continua a ter adeptos. Quando Churchill reconhecia as imperfeições da democracia (“o pior dos regimes, excetuados todos os outros”), não desconhecia os seus méritos e o fato de ser o elo mais próximo entre Estado e civilização. A democracia é ruidosa, algumas vezes confusa ou mesmo caótica, mas assim se processa a vida em sociedade.
Antes esse barulho, também vibrante e criativo, que o silêncio imposto pelas ditaduras, o silêncio dos cemitérios. A propósito, não nos falta referência recente na História. Basta lembrar as duas décadas do regime militar de 1964. Também os generais-presidentes optaram por um ministério técnico, em que pontuavam tecnocratas, a gerir a coisa pública de costas para o povo. E desprezavam a política, que só mantinham como fachada. O velho positivismo, que inspirou os diversos governos militares ao longo da República, era o farol opaco a guiá-los.Em caso de crise, em vez de diálogo, sacavam os atos institucionais. A imprensa e a produção artística foram censuradas e o Congresso fechado por três vezes, com cassações de parlamentares oposicionistas e intimidações de toda ordem. Exílio, tortura e morte eram os destinos comuns dos opositores.
Não há dúvida de que tais regimes, algumas vezes, podem até aparentar maior funcionalidade, já que impõem sua vontade sem submetê-la a ninguém. O resultado, porém, é a contínua alienação em relação ao que se passa na sociedade. Também por isso, o regime militar acabou, sem que se precisasse dar um único tiro.
Como o atual presidente, ao longo de sua carreira parlamentar de três décadas, manifestou-se reiteradamente admirador incondicional do regime de 64 — de seu ideário e de suas práticas —, há razões de sobra para associá-lo a um projeto autoritário de poder.
Há dias, por exemplo, compareceu a uma manifestação pró-intervenção militar e pelo restabelecimento do AI-5, à frente do QG do Exército, em Brasília. Subiu numa camionete e se dirigiu ao público, em palavras convocatórias, de ação política direta, sem qualquer intermediação político-partidária.
O simbolismo do ato (manifestantes à frente, o Exército ao fundo e o presidente entre ambos) agravou o temor — ainda presente — de que algum retrocesso gravíssimo estava sendo tramado.
A Constituição Federal, em seu artigo 1º (cláusula pétrea), estabelece que a República “constitui-se em Estado democrático de Direito”. Qualquer tentativa — direta ou indireta ou mesmo subliminar — de violação dessa cláusula resulta em grave infração, sujeitando o governante às penas do crime de responsabilidade.
Nesses termos, e por esse motivo, o PDT, partido que lidero na Câmara dos Deputados, ingressou, no dia 22 de abril passado, com pedido de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro. E o fez por ver nele grave ameaça à democracia, um bem humanitário, conquistado a duras penas, e absolutamente inegociável.
Artigo publicado no jornal “O Globo”: https://glo.bo/2zjt9S7 (para assinantes)
*Wolney Queiroz é o líder do PDT na Câmara dos Deputados