A lei que regulamentou trecho da Constituição e torna o racismo crime inafiançável foi sancionada pelo então presidente José Sarney e ficou conhecida pelo apelido do autor do projeto, o advogado e jornalista baiano Carlos Alberto Oliveira, o Caó, então deputado federal pelo PDT do Rio de Janeiro, morto em fevereiro de 2018.
Especialistas apontam grandes avanços em três décadas, mas temem retrocessos dada a atual conjuntura política do país. Até 1989, atos de discriminação racial eram tratados no Brasil como contravenções penais passíveis de prisão simples (três meses a um ano) e multa. Essa realidade foi transformada pela Lei Caó, que completou 30 anos no sábado (05/01).
Caó integrou um grupo de parlamentares ligados ao movimento negro que, desde a Constituinte, buscava apresentar demandas levadas pelo grupo ao Congresso. Era preciso fazer valer o que a Constituição recém-formulada já previa sobre a prática de discriminação racial.
A deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) cumpria seu primeiro mandato na Câmara durante a discussão da lei. Ela dividiu com Caó a tarefa de convencer os colegas a aprovar a proposta. Embora o país vivesse um momento de efervescência democrática, ela conta que não havia consenso em torno do projeto no Congresso.
“Foi uma batalha, eu e Caó trabalhamos muito para passar essa lei. A principal argumentação dos deputados contrários é de que não tem racismo no Brasil, e que nós queríamos imitar os Estados Unidos. Infelizmente, essa visão ainda persiste. A figura do Caó era de muito prestígio, e dava credibilidade para essa articulação”, relembra a deputada.
Em 1989, a advogada Edna French cursava a faculdade de direito no município de Valença (RJ) quando uma professora disse, após discussão em sala de aula, que ela deveria “voltar para a senzala”. Ao receber a queixa, a direção da instituição pediu que French assinasse um termo admitindo que tinha praticado injúria contra a docente.
“Eles mexeram com a negra errada. Com apoio do movimento negro e me baseando na Lei Caó, que tinha acabado de ser sancionada, eu reuni o material que precisava para levar o caso à Justiça. A direção ficou com medo e acabou demitindo a professora. Ela era juíza criminal. Fico pensando nos negros que passaram pela mão dela”, diz a advogada.
Os indicadores socioeconômicos medidos pelo IBGE mostram que ainda há uma grande desigualdade racial no país. Em 2016, a taxa de analfabetismo entre os brancos era de 4,2%, ante 9,9% entre negros e pardos. No terceiro trimestre de 2018, a taxa de desocupação registrada entre a população branca era de 9,4%, bem abaixo daquela observada entre negros (14,6%) e pardos (13,8%).
Em junho do ano passado, foi publicado o Atlas da Violência 2018, organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O relatório analisou os dados mais recentes disponíveis do Ministério da Saúde, de 2016.
“É como se, em relação à violência letal, negros e não negros vivessem em países completamente distintos. Em 2016, por exemplo, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16 por 100 mil habitantes contra 40,2)”, diz o texto.
Apesar dos números desoladores, os especialistas ouvidos pela DW Brasil avaliam o saldo dos últimos 30 anos como bastante positivo no combate ao racismo. O advogado Gustavo Proença, doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), pontua o arcabouço jurídico criado a partir da Lei Caó com essa finalidade.
“Tivemos no campo jurídico a lei que tornou crime a injúria racial e outras legislações no âmbito penal e, principalmente, no civil. Em particular, as cotas no ensino superior e concursos públicos”, afirma o advogado. “Tivemos também a lei que instituiu a obrigatoriedade do estudo da contribuição africana e afrodescendente para a história do Brasil. Essa lei visa a dar visibilidade e resgatar essa memória, buscando um reencontro do Brasil consigo mesmo.”
Apesar do otimismo, Proença expressa preocupação com o risco de retrocessos apresentado pela atual conjuntura. Em sua visão, a interdição ao diálogo gerada pela polarização política não é benéfica para a superação desse quadro.
“Essa tensão gera posições irrefletidas ou extremamente superficiais, como a ideia de que não podemos dividir a sociedade em brancos e negros, uma vez que somos todo brasileiros. É claro que somos, mas, entre os brasileiros, há desigualdades e injustiças. O racismo não é um problema dos negros, mas da sociedade. Para a sociedade superar esse problema, é preciso dialogar.”
Posição semelhante é a do advogado Carlos Alves Moura, secretário-executivo da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP) da Conferência Nacional dos Bispos no Brasil (CNBB).
“Se considerarmos as manifestações dos personagens que estão assumindo as rédeas da República, nós temos que ficar preocupados. Há indicativos de um retrocesso por parte do Estado brasileiro”, afirma Moura. “Agora, acredito que esse retrocesso, felizmente, não atingirá a sociedade, que está avançando na superação do racismo, embora não da maneira que nós desejamos.”
Ao longo dos últimos trinta anos, outras formas de discriminação foram incorporadas à Lei Caó, como a intolerância religiosa e contra pessoas com deficiência. Em 2017, por outro lado, foi arquivado o Projeto de Lei Complementar 122, que integrava o crime de homofobia ao escopo da lei de 1989.
Outros dois projetos de atualização da lei tramitam no Congresso Nacional. O PLS 518/15 propõe tipificar o crime de veiculação de informações ou mensagens que induzam ou incitem discriminação étnica, religiosa ou de procedência nacional em rede de computadores. Já o PL 1749/15 objetiva tipificar o crime de injúria racial coletiva e tornar pública e incondicionada a respectiva ação penal.
Ascom Lid./PDT com Terra Notícias